Sobre amores e suas giletes
Limpo o espelho embaçado, bato
o barbeador na pia. Pele lisa, impecável! Chega a ser comovente a minha
incapacidade de lidar com as minhas lembranças. Gosto disso. Meus amigos dizem
que sou psicopata. Mas um dos requisitos para tal estado é não possuir
sentimentos, certo? Mas eu sinto, e sinto muito. Por ela está lá, no lugar errado
na hora certa. Só depois fiquei sabendo que ela amava os finais de tarde. Era
uma moça bondosa e a prova disso é que ela me deixou narrar a nossa história. Estou ouvindo uma música diferente agora, ela gostava desse Blues.
Isso não significa que mudei, não significa que não faria o mesmo outras vezes.
Ela estava calmamente fazendo
seu serviço quando e eu cheguei e me aproveitei do fato dela ter se lembrado de
mim, eu nunca me lembrei dela, mas poderia lembrar a partir dali e foi isso que
eu fiz. Ela estava arrumando os discos, e eu estava prestes a desarrumar as
coisas.Eu era novo aqui, tinha dado um
tempo porque às vezes e necessário ir embora, ser daqueles que não fica por
muito tempo. Ir embora das próprias opiniões e se esvaziar pra algo novo, ter
a inconstância como um de seu sobrenome, sair sem que ninguém veja. E
simplesmente ir. Ir não é algo dramático, todos irão uma hora, é importante desobedecer ao
curso da vida e fazer várias combinações consigo mesmo.
E a próxima combinação era ela.
Não sosseguei enquanto não medi a sua cintura com as minhas mãos.Se eu cai? Muito. Amava me derrapar
naquelas curvas! Ela amava ficar nos meus
braços, eu fazia questão de mostrar pra ela o quanto ela era frágil e o quanto
eu poderia protegê-la. Da mesma forma que um vendedor que convence a comprar um
produto que não necessita, ela comprou e pagou caro e numa conversa de
argumentos rápidos eu a ganhei de uma forma que ela nem perguntou sobre a
garantia.
E no envolvimento dos encontros
aleatórios, ela quis me dizer que se envolver significava compartilhar planos,
dar asas aos sonhos. Ela sempre quis me convencer com coisas desse tipo. Acho
que ela deveria ter sussurrado isso tudo enquanto mexia o quadril pra me
provocar. Ah, como era linda! Se ela
tivesse usado aquele olhar ardente pra mostrar que eu estava errado, talvez
tudo fosse diferente, mas olhos calmos por vezes, servem apenas de charme, os que conseguem algo são aqueles que tem olhar firme.
Mas como falava, é ridículo
como uma simples coisa não só desenterra como ressuscita o que estava morto.
Uma gilete!Eu estava completamente
alcoolizado, naquela época enquanto ela falava que bom mesmo era fazer loucuras sóbria, como conseguia eu não sei. Qual meu hobby? Atuar. E ela era a platéia do meu
teatro, e como aplaudia! A cada declaração sussurrada, a cada música declamada, a
cada noite bem suada.
Eu tive momentos de fraqueza, assumo, ela tocou no meu íntimo! Eu sou um homem maltratado e ela quis cuidar
de mim. Eu permitia, mas a verdade é que eu não tinha mais poder sobre aquilo.
Mas existem coisas na gente que não mudam. É necessário aceitar que cada pessoa
é um oceano, e que às vezes nós estamos só flutuando onde queríamos mergulhar.
Mergulhar e querer continuar imerso, imerso sem se afogar, pra isso eu tinha que mudar ou virar peixe, e eu gosto de peixe.
Eu amava a liberdade, ela a desejava
Tinha tudo pra dar certo, pretérito imperfeito.
Eu queria tudo e todos, colecionador
Completar é diferente de combinar
Completar é diferente de combinar
Se o charme e diversão da
diferença ficam pra quando o primeiro plano não dá certo, foi charmoso e divertido
porque nós não combinávamos. Ela era politicamente correta e pessoas assim
devem ser no mínimo infelizes e fazê-la feliz não era o meu objetivo. Tudo que
eu queria era prazer, nem que pra isso eu precisasse amar. Eu sou fogo,
vinho é a minha cor e marrom era a cor da pele que eu fazia queimar enquanto me divertia com a sua inocência. Ela era uma boa menina. E eu? Um homem direcionado que às vezes perdia o foco.
Ela estava ocupando espaço na
minha cabeça, muitos falam sobre ocupar espaço no coração. Fracos. Tudo foi se tornando um momento e eu me esquecia a toda hora
que não podia ir muito longe. A cada passo que eu dava rumo a minha derrota
emocional de um dia amar alguém, ela aplaudia. Eu conhecia seus segredos, ela
me aceitava. Sempre me lembrarei daquele sorriso e de como ele se desfazia toda
vez que eu pedia pra ela me cortar com a gilete. Ela não entendia que aquilo
era um exercício pra mim, eu entendia a dor. Ela repudiava. Lembra que eu disse que estava
caindo?
Nos momento mais intensos em
que ela me arranhava e fazia minhas costas arderem, tocava esse blues no celular, e ela sorria naquele momento ardente um sorriso de anjo, tão prazeroso
que não podia ser meu. Eu tinha quem eu queria, na hora que eu queria. Mas eu
não podia mais. Naquele momento em um quarto
ardente em que ela ansiava por cada minuto de prazer, eu parei. Olhei nos olhos
que estavam incrivelmente firmes, com meus olhos verdadeiramente tímidos,
disse para ela ir.
“Ir pra onde?”
“Vai embora"”
“Mas por quê?”
“Me envolvi demais”
Eu a olhei, com olhos cheios de
lágrimas, sinto vergonha até hoje disso, mas como sempre ela entendeu. A essa altura meu corpo já era
um tela que ela se divertia rabiscando, a minha cabeça, o lugar de onde ela não
saía. O que fez ela diferente de uma garota de programa, que levanta e sai
friamente para o próximo cliente foi que ela me pediu para que eu a marcasse de
alguma forma. E eu sabia o jeito, ela não precisou insistir muito. Peguei a
gilete e afastei seus cabelos, saboreei cada centímetro daquelas constas antes de fazer escorrer a minha cor preferida. Era uma boca cor de vinho, igual ao que tomei hoje
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