Anexos do tempo

22h45min, Julho de 2040.

Enquanto ela checava as horas mais uma vez, Benjamim entrou correndo na sala e exclamou ofegante:
“Olha mãe!”
Ela de relance, olhou cansada e disse: “Muito bem meu filho!”
Ele mais enraivecido do que triste disse: “Mãe, isso não são as minhas tarefas!”
Ela arqueou a sobrancelha e perguntou com uma voz mansa: “Então o que é Ben?”
“É uma foto sua, e aqui diz que ela é de 2014”, respondeu ele continuando, “Você estava muito diferente."

Ela se aproximou dele e olhou a foto, rapidamente passando de um ar cansado para sério. Na foto ela tinha um sorriso escancarado no rosto, e gesticulava um "pare", enquanto uma amiga estava com a cabeça encostada na janela do ônibus e o outro amigo estava com uma expressão de dor. Ela também se lembrou de quem havia fotografado.

“O que foi mãe?”
“Nada”, respondeu ela enquanto voltava à sua mesa e a realidade.
“Quem são essas pessoas?”
Ela pensou muitas coisas, e como uma música que conta uma vida, ela tentou resumir:
“Estávamos voltando de Montes Altos, uma cidade pequena próximo do lugar em que nasci, estava escurecendo, fechando um dia maravilhoso. Não éramos mais os mesmos de quando a gente havia se conhecido, estávamos todos perdidos!.”
“Ahh”, sussurrou ele sem entender nada.
“O que é essa coisa na perna do seu amigo?”
“Ah, era um notebook! Estávamos ouvindo engenheiros do Hawaii”.
“Vocês usavam essa coisa para ouvir música?”
“Sim! Usávamos para tudo.” Respondeu ela ignorando a cara de susto de Benjamim.
“Engenheiros da onde mãe?”
“Do Hawaii! Era nossa banda preferida.”
“Quando eu crescer quero ser engenheiro de uma ilha também!”
 Ela sorriu relaxada.
“Nessa época Ben, nós estávamos no auge do assunto que nunca acabava, da procura de um motivo para gargalhar e na expectativa de saber se aquilo que vivíamos era seguro. Mas tempo nenhum foi suficiente para nos responder, apenas seguramos em algo e seguimos esperando que ninguém soltasse ou que nós mesmos não mudássemos de opinião." Benjamim estava bocejando. “E essa do cabelo bagunçado quem era?”
“Ah, o vento estava entrando pela janela do ônibus, ela estava mergulhada na música. Naquela época ela falava que tinha uma vida difícil, eu sempre gritava com ela, falando para ela se importar menos, porque  eu sabia que haveria dores maiores, outros fins de mundo, e a gente precisava aproveitar aquilo. Mas eu entendia que o luto mal vivido é a razão dos sorrisos falsos. Só que ninguém tinha morrido e eu queria rir o tempo todo. E mesmo com o cabelo bagunçado, ela era uma espécie de pintura suave e exótica, infinitamente mais bonita que a Marilyn Monroe”.

“A Marilyn é outra amiga sua?”
Ela sorriu de canto, beijou a testa dele e respondeu que não.
Benjamim esfregava os olhos, mas se mantinha firme em sua missão de todos os dias.
“E por que ele está apertando os olhos assim mãe?”

“A música estava fazendo sentido, naquela época nós discutíamos sobre socialismo, e ouvíamos músicas que criticavam a sociedade, mas quando ele fazia essa cara era porque a música era de amor. A vontade dele era de reviver tudo que na noite anterior ele tinha jurado ter esquecido. No final das contas, nossas músicas diziam tudo o que a gente era, queria ou pretendia ser, eram as nossas verdades poetizadas. Foi na casa dele que aprendemos a dançar Reggae e beber.”

“Ele estava triste mãe, ‘tavam’ machucando ele?”
“Surfando Karmas e DNA!”
“Ele queria ser surfista mãe?”
“Não, era o nome da música que ela estava cantando”.
“Ah...”

“Ele estava quase morto, mas eu sabia que ele iria sobreviver. Ele falava algo sobre o significado da música, e eu simplesmente pensava que interpretações eram inúteis, e que a mais profunda ainda é superficial, é apenas julgamento de quem se arriscou a escrever. Uma resposta qualquer para uma pergunta normal."

“Mãe, onde eles estão agora?”, perguntou ele ignorando o que ela tinha falado.
“Eles estão...”
Ela ia responder quando a campainha interrompeu e Benjamim saiu em disparada para abrir a porta que logo depois ele voltou desanimado ao perceber que era um vizinho do condomínio. Ela falou em tom baixo com o vizinho e rapidamente fechou a porta.

“Ben, vá dormir,” pediu ela, calma.
“Não mãe, você sabe! Não posso.”
Ela sabia. E saiu em direção à cozinha.
“Mãe?”
“O que foi?”
“Por que você está fazendo sinal com a mão para parar?”
“Não queria tirar foto.”
“Mas por que?”
Enquanto ela enchia um copo de água, respondeu: “Até hoje eu não sei se sou pior fotografando ou sendo fotografada!"
“Humm e quem tirou a foto?”
“Essa pessoa gostava de tirar foto mãe?”

“Essa pessoa gostava de praticamente tudo que eu gostava, nesse dia nós tínhamos nos divertido bastante, tiramos fotos na torre da cidade, nós planejamos nossa vida inteira, combinamos que o nome do nosso filho seria Benjamim. Eu estava pedindo para ele parar, porque ele gargalhava mais do que eu, pensando que eu estava achando ruim. Quando no ônibus ficava desconfortável eu dormia no colo dele, ele era meu medo e segurança, naquela época ele fazia parte da minha vida da mesma forma que são anexadas três ou quatro páginas em um livro pronto. Mas a intenção do clipe ao juntar algo no livro, é dizer que aquilo é temporário, mesmo que depois retirem o clipe e as marcas permaneçam.”

Isso foi o que ela pensou em responder para Benjamim, mas ela não fez isso. Benjamim havia saído tropeçando em seus passos pequenos, prestes a finalizar sua missão de todos os dias.
Ele gritava alegremente: “Olha mãe!” “Advinha quem é?!” “Advinha quem é?!”
Ela olhou, colocou a foto debaixo do pano da mesa, e pensou: “É alguém que não estava no dia da foto.”
“É o papai!” “ É o papai!”  Brincava ele com quem tinha esperado a noite toda.

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