Capítulo 3. Dessalinização

Das pessoas que fui, já fui aquela que franziu o cenho, apertou os dentes e prendeu a respiração por três segundos. Aquela que segurou o choro. E desviou o olhar das situações que me fariam usar o passo a passo anti-choro. E quando chorava porque, sempre chorava, apagava as luzes. Não aceitava a minha sensibilidade. Não havia utilidade. Não entedia como situações relativamente longe de mim ocupavam parte em mim. Desejei ser um carro. Blindada. Meu pai disse uma vez que era pra eu aprender a falar sem chorar. Então não chorava com homens e não conhecia mulheres. Escrevia. Havia um mar no meu peito. Ninguém podia encostar em mim que eu já me sentia no boqueirão. Assinei minha blindagem com ceticismo e stand up diário de piadas sobre o divino. Vivi uma vida puramente humana, sem conexões. Cada dia por vez que numa hora resumiria meus ossos a pó e nada mais. Não lembro exatamente quando o meu processo de dessalinização começou. Mas a estrada teve papel fundamental nisso. Um dia olhei pela janela do ônibus e encontrei uma forma de sentir Deus. A natureza. Uma lágrima escorreu e eu não repeti o passo a passo. E desde então não consigo descrever o o respeito que tenho pelos elementos do mundo. As cores ficaram mais claras. Ter consciência do ar que entrava nos meus pulmões fez meu mar fluir. Sinto agora que alguns ventos descobrem uma nascente em mim. Teias sensíveis de exercício me permitem agradecer ao dia com sinceridade ainda quando tudo não parece bom. Sinto meu sangue se misturar com a terra. Inconstante. Apesar de que a pessoa que sou hoje seja B positivo que recebe doses semanais de adrenalina para me sentir viva, desde o dia em que vi Deus pela janela do ônibus, eu entendi que as lágrimas eram a expressão mais palpável da minha missão.



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